Hildo Honório do Couto
A melhor maneira de se entender o que vêm a ser línguas
crioulas é reproduzindo o processo de sua formação.
Observemos o caso das ilhas do arquipélago de Cabo Verde,
situado entre o nordeste brasileiro e o noroeste africano. Os portugueses
chegaram lá por volta de 1456, encontrando-o desabitado.
Logo a seguir, começaram a levar escravos de diversas etnias
e línguas da então chamada costa da Guiné,
fazendo dessas ilhas mais tarde um entreposto para distribuição
de escravos pelo mundo. O fato é que aí se constituiu
uma comunidade heterogênea, composta, de um lado, de portugueses,
e de outro, de escravos africanos falantes de mandinga, wolof, fula,
manjaco, felupe, bijagó e muitas outras línguas.
Sabemos que quando indivíduos estão juntos em um
mesmo espaço, geralmente interagem entre si. A interação
mais comum é a lingüística. No caso, porém,
não havia uma língua comum que permitisse essa interação.
Mas, como sabemos, pessoas que se vêem juntas, comunicam-se
umas com as outras. Se não têm uma língua para
isso, inventam-na.
Como se pode imaginar, a comunicação entre indivíduos
desses diversos povos deve ter sido muito difícil. Os colonizadores
portugueses (assim como os ingleses, os franceses, os espanhóis
e os holandeses) não se davam ao trabalho de aprender nenhuma
das línguas dos escravos. Tampouco, ensinavam o português
(ou qualquer outra língua) aos falantes dessas línguas.
Mas, os escravos tinham que se esforçar para entender as
ordens recebidas dos dominadores, inclusive por uma questão
de sobrevivência. Com isso, algumas palavras do português,
adaptadas à pronúncia da maioria das línguas
dos escravos, começaram a ser compartilhadas (mim, querer,
trazer, não, vem, etc.).
Nessa fase tratava-se de apenas algumas palavras compartilhadas,
não havia ainda regras para se construírem frases.
Tratava-se apenas do que em crioulística (ou estudos crioulos)
se chama de jargão. De qualquer forma, já se
tratava do germe de uma língua comum entre os diversos povos
aloglotas (de línguas diferentes) que conviviam em um mesmo
espaço. Como a convivência deles continuou (até
hoje existe a comunidade caboverdiana), seria de se esperar que
surgisse uma língua comum que permitisse a comunicação
entre todos os seus membros.
Quando começam a surgir regras para construção
de frases elementares, o jargão inicial evolui para o que
se tem chamado de pidgin (pronuncia-se como se não
houvesse o "g"). O pidgin tampouco é uma
língua plena, porém já permite uma interação
entre os diversos membros da nova comunidade, melhor do que a que
se conseguia na fase do jargão. De qualquer forma, ele não
é língua materna de ninguém. Os mandingas só
o usavam quando se dirigiam aos portugueses ou a falantes de outras
línguas africanas. Quando voltavam a seu grupo, falavam o
mandinga. O mesmo faziam membros das outras etnias/línguas.
Enfim, ninguém tem amor pelo pidgin. Assim que pode,
livra-se dele.
No caso de Cabo Verde, infeliz ou felizmente, a convivência
continuou. Começou a se cristalizar uma comunidade. E comunidade
consta necessariamente de um grupo de indivíduos ou população
(P) que convive em determinado território (T), unificado
por uma língua (L). A cristalização de uma
comunidade, leva necessariamente à emergência de uma
língua plena, fato que constitui o que chamo de Ecologia
Fundamental da Língua, ou seja, PTL.
E aí temos o momento crucial para a emergência de
um crioulo. Na verdade, ele é um pidgin que passou a ser
a língua principal de uma comunidade. Se o pidgin só
servia para uma comunicação precária, o crioulo
serve para todas as necessidades expressivas e comunicacionais de
seus usuários.
Dadas as circunstâncias em que surge, o crioulo geralmente
é mais "simples" (esse termo não é
politicamente correto hoje, melhor seria dizer "mais não-marcado")
do que a língua dominante, também chamada de língua
lexificadora, ou de superstrato. As línguas dominadas
geralmente são chamadas de línguas de substrato.
O fato é que praticamente todo crioulo convive com a língua
lexificadora, assim chamada por ser a que fornece a maior parte
do léxico (freqüentemente acima de 90%). Por isso, todas
as sociedades crioulas são um continuum de variedades
lingüísticas que vão desde a variedade basiletal
(ou basileto), que é a mais "pura", menos
influenciada pela língua lexificadora, até uma variedade
acroletal (ou acroleto), que é a mais próxima
da língua lexificadora ou dominante. Entre as duas variedades,
há uma série de variedades mesoletais (ou mesoletos).
Dadas as circunstâncias em que foram formadas, as línguas
crioulas geralmente têm estruturas gramaticais menos marcadas,
"mais simples" do que a língua superstrato e as
línguas de substrato. Em primeiro lugar, não há
nenhuma ou muito pouca morfologia flexional. Até mesmo a
morfologia derivacioinal é menos pródiga do que a
daquelas línguas. Por exemplo, o verbo normalmente não
se flexiona em número-pessoa nem em tempo-modo, como em português.
Vejamos alguns exemplos do crioulo português da Guiné-Bissau,
tirados de Couto (1994, p. 108):
(1) i fuma 'ele fuma'
(2) i fuma ba 'ele fumara, tinha fumado'
(3) i ba fuma 'ele vai/foi/ia fumar'
(4) i ta fuma 'ele fuma' (no sentido de tem o hábito de fumar)
(5) i na fuma 'ele está fumando neste exato momento'.
O equivalente à conjugação verbal desse verbo
em português seria assim:
(6)
(ami) N fuma '(eu) eu fumei'
(abo) bu fuma '(tu) tu fumaste'
(el) i fuma '(ele) ele fumou'
(anó) nó fuma '(nós) nós fumamos'
(abó) bó fuma '(vós) vós fumastes'
(elis) e fuma '(eles) eles fumaram'
A forma pronominal entre parênteses é tônica
e facultativa. Só é usada para se dar ênfase,
como faz o francês (moi, je vai au cinema 'quanto a
mim, eu vou ao cinema). A outra forma é átona e obrigatória,
pois é ela que indica nossas categorias de número-pessoa.
Como se viu, o radical verbal "fuma" não sofre
nenhuma flexão. As idéias de tempo, modo e aspecto
são indicadas pelas partículas que o acompanham, e
geralmente vêm antes dele. A ordem das palavras geralmente
é fixa, como no exemplo (7), mesmo quando sujeito e/ou objeto
se pronominaliza(m) (8-9).
(7) mininu kume kaju 'o menino comeu o caju'
(8) el kume kaju 'ele comeu o caju'
(9) el kumel 'ele comeu-o'
Enfim, as línguas crioulas são interessantes não
por serem "exóticas" ou "anormais", uma
vez que são línguas naturais como as demais, mas devido
ao processo de sua formação (surgirem do contato de
línguas) e por terem a maior parte de suas características
gramaticais não-marcadas. É bem verdade que uma ou
outra característica não marcada ocorre em todas as
línguas não-crioulas. O que diferencia ambas é
o fato de nas línguas crioulas esses traços ocorrerem
de forma concentrada. Poderíamos mesmo dizer que as comunidades
falantes de línguas crioulas são verdadeiros laboratórios
lingüísticos, nos quais as características mais
importantes das línguas naturais podem ser examinadas quase
como in vitro.
Para maiores informações sobre as línguas
crioulas, pode-se consultar as obras mencionadas na bibliografia
e nos diversos sites dedicados ao assunto.
Hildo Honório do Couto é lingüista
e professor da Universidade de Brasília (UnB).